A intenção de tentar a ascensão ao vulcão mais alto do mundo não veio de repente. Surgiu quando estivemos na Puna do Atacama, na região de concentração de vários gigantes que ultrapassam a fronteira dos seis mil metros de altitude, no final de 2017.
Nesse tempo tentamos a ascensão de alguns desses gigantes e passamos quinze dias pelos Andes ouvindo as histórias de outros montanhistas andinistas, estando presentes no momento da morte de um polonês na tentativa de ascensão a esse mesmo vulcão que tanto ouvíamos, e vivendo ali, nos arredores do gigante de fogo, Ojos del Salado, de 6893m. Mas sem subir. Admito que eu tinha até um pouco de medo de olhar pra ele. Tínhamos uma distância respeitosa eu e Ojos.
Mas o espírito da montanha tem um quê de paradoxal, uma energia mista que puxa de volta, e saímos dali com a vontade grande de tentar a ascensão ao Ojos. E lá fomos de volta, numa cordada de quatro montanhistas, dois brasileiros, um chileno e uma chilena, há poucas semanas atrás, em busca do cume.
A expedição, junção de duas cordadas, da esquerda para a direita na foto abaixo: Rodney, diretor da ENAM Escuela Nacional de Montaña do Chile e guia da cordada amiga; Claudio, chileno, seu cliente; Juan do Chile; Dani, também chilena; eu; Carlos, brasileiro; e Francisco, também chileno e cliente de Rodney.
O processo de ascensão a uma alta montanha como o Ojos del Salado, que bate os quase sete mil metros e tem o segundo cume mais alto da Cordilheira dos Andes, só atrás do Aconcágua por 70 metros, precisa de uma aclimatação cuidadosa.
Nossa expedição teve a duração total de 11 dias, sendo 7 deles de pura aclimatação antes do início efetivo do trekking ao Ojos.
Esses sete dias começaram em chegada direta aos aprox. 4300m no refúgio Laguna Verde, o primeiro dos quatro refúgios que utilizaríamos na expedição. No dia seguinte atingimos a cota dos 5000m em caminhada pelo Cerro Mulas Muertas, sem permanência na cota, voltando para pernoitar na Laguna Verde.
Refúgio Laguna Verde, a aprox. 4300m
A aclimatação sempre como um processo muito particular de cada montanhista, que depende de diversos fatores individuais e de relação com o entorno, e de fatores relacionados ao espaço e ao tempo de cada um. Alguns de nós afetados por dores de cabeça, alterações no aparelho digestivo, perda de apetite, todos sintomas comuns que têm influencia grande na cabeça de quem sente e aguentar essa pressão do ambiente, principalmente quando lembramos que a região é de deserto misturado com altitude, exigem muito da preparação mental do montanhista. A Puna do Atacama é remota e hostil, não deixa muita vida acontecer e jamais vai ter uma sombra fresca de árvore ou um canto de pássaro pra aliviar. É boca seca de areia, coração batendo forte de altitude, peito dolorido de tanto trabalho pulmonar, sol junto com a cabeça quente de enxaqueca. E continuamos andando.
Juan em ascensão ao Cerro Mulas Muertas, até os 5000m, em aclimatação.
Passam os dias e buscamos a ascensão ao vulcão Incahuasi, de 6621m, a décima segunda mais alta dos Andes, como forma de continuar o processo de aclimatação. Partimos do refúgio Laguna Verde com a caminhonete até um acampamento base de aprox. 4900m e porteamos algumas provisões como água e alimentos até um acampamento alto a 5200m, no colo entre o Incahuasi e o Fraile, outro gigante de seis mil de difícil e maçante ascensão por sua trila de rochas e pedras soltas. Pernoitamos no base, e no dia seguinte subimos acampamento ao ponto alto, pernoitamos novamente, e partimos às 4h da manhã em busca do cume do vulcão Incahuasi. Montanha difícil, exigente, uma meditação andando constante no aclive de pedra solta que exigia que chutássemos a terra pra cravar os pés, senão a cada passo pra cima descíamos outros três. Atingimos a cratera e Pachamama não permitiu a chegada ao cume por estar um dia de ventos de 120km/h que comprometeram a parte final do trajeto, abortando a investida aos aprox. 6450m. Voltamos e pernoitamos exaustos no acampamento alto, numa noite longa de descanso que começou antes mesmo do sol se pôr completamente. No trajeto de volta percebi um sintoma de mal de altitude que nunca havia sentido, que foi a perda parcial da visão por micro hemorragias na retina, que logo melhoraram pela baixada de altitude ao acampamento alto, descanso, e muita hidratação, coisa que sempre tivemos o cuidado de deixar em dia.
Carlos tomando fôlego ao montar o acampamento alto a aprox. 5200m para ascensão ao vulcão Incahuasi, 6621m, em aclimatação.
Na foto abaixo, Juan e Carlos exaustos, descansando ao baixar do vulcão Incahuasi. Esta foto foi tirada enquanto estava com o sintoma de perda parcial da visão por mal de altitude, ainda achando que era só meu óculos sujo. Enxergava turvo como se houvesse uma neblina. O sintoma foi curado ao baixar e descansar.
Descenso ao acampamento base do Incahuasi e começo do trekking ao Ojos. Tentamos atingir o refúgio Atacama, a aprox. 5300m, mas fomos interrompidos por glaciares que se formaram na estrada normal. Seria possível atingir o refúgio Atacama de caminhonete 4×4, mas com os glaciares e a história que ouvimos de uma dupla de franceses que encontramos no refúgio Laguna Verde que foram a pé, fizeram a gente regressar ao refúgio Murray, ou Claudio Lucero, de aprox. 4500m. No caminho encontramos outra expedição que tentaria o cume do Ojos no mesmo dia que nós e que tinha acabado de voltar do refúgio Atacama pra limpar o refúgio e aclimatar. Combinamos no dia seguinte de subirmos juntos pela rota alternativa que sabiam guiar e fomos. Pedras grandes, pontudas, tiramos ar dos pneus pra dificultar que rasgassem nas rochas e subimos a “rocky way” rumo ao terceiro refúgio.
No refúgio Murray, verificando a previsão do tempo para o dia de ascensão ao cume do vulcão Ojos del Salado, enviada por amigos em Santiago através do SPOT X.
Refúgio Atacama, a aprox. 5300m, com o cume do vulcão Ojos del Salado, 6893m, ao fundo.
Refúgio Atacama, a aprox. 5300m, em astrofotografia com parte da Via Láctea e da Pequena Nuvem de Magalhães, galáxia satélite da nossa.
Do refúgio Atacama a aprox. 5300m é possível chegar com um bom 4×4, talvez adaptado, ao refúgio Tejos, a aprox. 5900m, o último refúgio antes do cume e conhecido como o mais alto refúgio de montanha do mundo. Mas fizemos o trajeto caminhando, com cargueiras pesando seus quase 30kg, cheias de provisões suficientes para dois dias de tentativa de cume e os equipamentos correspondentes às exigências da montanha. Acreditamos que fomos a primeira expedição da temporada, já que o refúgio se encontrava com bastante gelo no interior. Passamos um tempo limpando tudo e preparando a logística para o próximo dia. Acordaríamos às 1h30 da manhã, café da manhã reforçado, equipamentos ajeitados na mochila, câmera a postos, piolet, crampons, camadas e camadas de pluma e proteção, saímos.
A caminhada na madrugada é congelante. Os 30 graus abaixo de zero sem sol, e sem perspectiva de sol chegar, massacram a mente. Os pensamentos por desistência chegam com força, o autoflagelo, as perguntas do porquê não estar esse tempo numa praia tomando água de coco, tudo ali é hostil. A caminhada é silenciosa, não existe possibilidade de falar e andar. Ou fala, ou anda. E passamos horas e horas sem falar uma palavra, porque o oxigênio rarefeito não permite abusos. Subimos em constante meditação silenciosa, em constante embate contra o lado que quer voltar, que quer cair de exaustão, que quer chorar sem razão. Subimos ao mesmo tempo em constante contemplação respeitosa, tanto das nossas próprias faculdades físicas e mentais que ainda resistem fortes, quanto na contemplação da força gigante do ente que pisamos. Andamos pelas costelas do gigante vulcão, que um dia foi tão quente quanto o coração do planeta. Por isso continuamos subindo, levando o peso do paradoxo nas costas, em constante aguardo pelo nascer do Sol.
Carlos em primeiro plano subindo do refúgio Atacama, aprox. 5200m, até o refúgio Tejos, aprox. 5900m, com mochila de aprox. 30kg.
Refúgio Tejos, a 5900m, conhecido como o refúgio de montanha mais alto do mundo e, à direita, o cume do Ojos del Salado, 6893m.
Madrugada de ascensão ao cume, em foto em longa exposição e feita à beira da exaustão com mitons que não permitiam a regulagem das configurações da câmera. Bastante representativa do momento.
E nasce. Nasce o Sol e renovam devagar as forças, quase que como num novo dia. As oito horas de ascensão se dividem em fragmentos menores, de noite, de dia, de meio, de começo, de fim. Dividimos o caminho em pequenas partes que temos força pra trilhar. Daqui até aquela pedra. Depois até mais aquela outra pedra. Aí depois vira naquela mancha de areia e chega no glaciar. Cruza o glaciar, sobe ali naquela ponta e chega no platô. E vamos diminuindo a tarefa grande que é subir o maior vulcão do mundo em degraus. Devagar. Constante. Pra cima.
Chegamos à cratera e dividimos a cordada. Decido usar o tempo que Carlos e Juan tentariam junto à outra expedição fazer a última escalada ao cume pra ficar em contemplação ali na cratera. A outra expedição teve uma desistência, lembro, por mal de altitude, e ficou só em duas pessoas. Ficamos, então, eu e Dani, a chilena, que não se sentia tão bem, na cratera do Ojos. E que sensação intensa. Estar ali, no topo de um vulcão ativo, com a cratera cheia de neve, a quase 7000m, apreciando a vista como se na praia. Faltou a água de coco, que talvez chegasse ali congelada.
Na cratera do vulcão mais alto do mundo, o Ojos del Salado, com o SPOT Gen3 enviando a localização em tempo real pra um link que ficou disponível no Instagram: @gobattifotografia.
Carlos e Juan atingem com sucesso o cume final, junto a Rodney e Claudio. Eu e Dani os recebemos com toda a felicidade que pode caber de novo no paradoxo de todos termos chegado onde queríamos, mas termos agora que arcar com o peso de voltar todo o trajeto até a segurança. Chegar no cume de uma montanha é finalizar metade do proposto.
Baixamos em segurança, com vida, com fotos, com histórias, com sequelas. E finalizo esse relato lembrando de algumas sensações enquanto estive na cratera. De toda parte do trajeto, aprendi com irmãos a agradecer e oferecer à Mãe Terra. Divido sempre meu alimento com o chão, por ser dali que viemos e pra lá que vamos, por ser a Terra, a terra, parte da nossa existência e ser a grande governadora da expedição. Montanha nenhuma se faz sozinho. Ali estamos no grande tribunal de Pachamama e subimos sempre em respeito, em uníssono com o humor da Montanha. Ojos del Salado nos permitiu a ascensão com temperaturas não tão baixas quanto já se viu por ali, com ventos quase nulos, glaciares diminutos, nenhuma neve no caminho. Fomos presenteados com a permissão da Montanha a atravessar suas costelas e chegar ao seu grande Olho, à ponta superior do seu triângulo. E toda vez que atingimos o topo de uma montanha, viramos também Montanha. Desde lá de cima temos a maior fundação já projetada para alicerçar uma existência: toda uma montanha aos nossos pés. Saímos fortes, equânimes, horizontais e meditativos.
Porque incorporamos a existência da montanha.
Somos montanha, somos fortes como o maior vulcão do mundo.
Obrigado.
Oferenda a Pachamama.