“As pessoas só protegem aquilo que amam. E não se pode amar algo até que você se identifique completamente.”
Guardei essa frase do filme 180° South, filmado justamente nas estradas que há pouco percorri. E ainda que o Cerro Corcovado tenha se escondido entre as nuvens, viajar por essa região me fez voltar ao documentário e enxergar a totalidade da situação, captando tudo o que ele me dizia. Por uma série de quilômetros, eu me tornei o personagem principal desse filme.
Tentar explicar ou sentenciar esse curto espaço de tempo em que cruzamos estradas inóspitas de chão batido Chile adentro não é das tarefas mais fáceis. A Carretera Austral é algo que brinca com o imaginário de todo e qualquer viajante, que fascina a cada esquina quem a desbrava e faz engolir seco, numa mescla de saudade e alegria, aquele que por aqui já esteve.
De mochileiros a montanhistas, de cicloturistas cascudos a marujos de primeira viagem. Entre fiordes, vulcões ativos, máquinas de obras, glaciares e sinalizações do tempo de Pinochet, poucas estradas tornaram-se tão míticas em nosso continente e serviram como pano de fundo para aventureiros realizarem seus sonhos como essa.
Lagos translúcidos verdes e azuis, pequenos vilarejos rudimentares, olhares desconfiados e a ausência do que chamamos de pressa. De Villa O’Higging, mais ao sul, a Puerto Montt, quase 1.300 quilômetros ao norte, onde estradas sinuosas e esburacadas se unem a balsas que navegam por verdadeiros labirintos de ilhas ao longo da costa. Aqui a impressão é que o tempo esqueceu de fazer o seu trabalho e a vida caminha em outro ritmo.
Nenhuma outra estrada aberta no Chile levou tanto tempo e custou tanto ao cofres da nação. Dificuldades na comunicação com o resto do país, barreiras naturais como geleiras, montanhas e fiordes, e o rigoroso inverno da região fizeram dessa uma odisseia que perdura até hoje. Um preço alto, mas justo, para quem quis traçar um caminho pelo coração da Patagônia.
Hoje, mesmo com incontáveis visitantes e o acesso rápido à informação, os diferentes cenários e situações ainda insistem em se confundir. De lives via redes sociais do alto de vulcões isolados à cara fechada, cismada e de poucos amigos da senhora que vende pães em sua pequena mercearia. Vilas que recebem pessoas dos quatro cantos do mundo sob um inglês impecável, mas que ao mesmo tempo serviria como um ótimo refúgio para um ex-espião da KGB cair no esquecimento. Talvez uma curta viagem no tempo, uma espécie de volta ao passado.
E foi justo ali, dirigindo horas pela lendária Carretera, que tanto figurava nos meus mais honestos desejos, dormindo ao lado de lagos e caminhando por trilhas remotas, que cheguei a uma grata conclusão sobre meu sentimento por essa região. Pequenas conexões no meio do caminho me levaram a algo que eu nunca havia me dado conta: viajar é uma situação simples, às vezes até banal, mas que na maioria das vezes acaba carregada de significado.
Nos últimos dois anos eu tenho gastado bastante tempo perambulando pela Patagônia. Por um bom período, fiz do extremo sul de nosso continente o meu “lar doce lar”. Passei a chamar de casa um lugar que antes vivia somente no meu imaginário, e que agora contava com um quintal enorme que se estendia por milhares de quilômetros.
Mas consequentemente, isso acabou por jogar um peso sobre meus ombros. Quando você passa a ter uma vida ao ar livre e se apaixona por determinados locais, acaba por assumir uma certa responsabilidade sobre esses lugares selvagens. E eu, involuntariamente, terminei por abraçar essa dívida com a Patagônia.
Durante muito tempo, percorrendo locais praticamente intocados, adquiri, quase que inconscientemente, um sentimento de proteção. Um motivo para reivindicar um profundo respeito de todos com essa região e justificar um instinto voraz e categórico, mas inevitável, que exige o máximo compromisso e cuidado daqueles que avançam sobre essa paisagem.
E ao passo em que, durante minhas constantes idas e vindas ao sul, passei a me acostumar e não me surpreender tanto com as repetitivas surpresas na paisagem, terminei por acumular um amor gigante pela região. Como uma paixão avassaladora que com o tempo se transforma em amor, carinho e cumplicidade, descobri que eu já estava mais conectado do que imaginava, mesmo com lugares que não me eram familiares.
Glaciares que antes prendiam meu olhar perplexo, agora são tratados como “velhos amigos”. Raposas e guanacos, antes alvos das minhas lentes, deixaram de ter minha curiosidade para ganhar o meu cuidado. Inevitavelmente absorvido e, de certa forma, anestesiado, isso me devolve ao diálogo do filme. Se você ama um lugar, tem o dever de protegê-lo, e para amá-lo, você precisa conhecê-lo. Eu provavelmente nunca vou conhecer a Patagônia por inteira, mas ela me reconhece como ninguém. O pouco que vi já me faz parte dela. E, consequentemente, me coloca na linha de frente de sua defesa.
Foi então, percorrendo a estrada mais bonita de minha vida, sem me importar com a paisagem, que eu finalmente entendi o que já estava sacramentado há algum tempo: Se a Patagônia é um sopro da vida, agora ela é parte integral da minha respiração.