Quantos belos caminhos se abrem quando escolhemos seguir o coração? Quem sai pra viajar de bicicleta não quer pegar carona, é oficial. Mas quem viaja com o coração se permite viver experiências muito mais intensas que qualquer travessia. Era véspera do meu aniversário, o meu primeiro na estrada e eu tinha um plano: percorrer mais um dia de deserto, com lindas paisagens, preparar um modesto e delicioso jantar e acampar com as estrelas. Nada mal né? 60km depois cheguei a uma bifurcação: ou mantinha o plano ou saía da ruta 5 para ir a uma cidade chamada Taltal. Escolhi o caminho do coração.
O deserto é lindo e hostil, é quente e frio e principalmente… deserto. Já em uma rota desconhecida, 30km depois, encontrei o mar e uma cidade charmosa. Parei na praça e a Olívia veio até mim. “Você chegou! Passamos por você na estrada”. Logo depois veio o Álvaro com a Perica. Os recém casados e sua linda cachorrinha saíram de Buenos Aires rumo a Califórnia em uma Kombi.
A minha experiência na Argentina foi tão boa, que quando encontro hermanos pelo caminho é como encontrar um bom e velho amigo. Em poucos minutos de conversa estávamos tão entrosados que naturalmente decidimos encontrar um lugar para acamparmos juntos. Disse que dentro de algumas horas eu ficaria mais velho e acabei tendo uma noite bem diferente da que eu imaginava. Cozinhamos um tradicional macarrão de viajante, abrimos um vinho, conversarmos muito e fotografamos as estrelas. Eles esperaram o relógio marcar meia noite para me darem um abraço. Armei minha barraca, eles transformaram a sala de jantar da Kombi em cama e dormimos com o som das ondas do mar, que quebravam atrás das rochas de onde estávamos.
Sem me dar conta, passei 10 dias com eles, com a bicicleta dentro da Kombi. E vivemos esses dias como grandes amigos, fazendo piadas, escutando boa música, conversando sobre os mais variados assuntos, acampando, cozinhando, comendo as nossas “galletitas” e sempre tomando um vinho no fim do dia. Por um lado eu queria estar pedalando, por outro estava muito feliz vivendo uma viagem diferente. Deixei o coração falar de novo.
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Deserto do Atacama
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Israel fotografando o deserto do Atacama
- O Deserto do Atacama sempre foi um dos meus principais desejos na América do Sul e definitivamente eu sempre quis atravessa-lo inteiro pedalando. Mas precisei me confrontar e deixar o orgulho de lado. Senti que seria uma tremenda vaidade e um egoísmo sem sentido abandonar pessoas que me conquistaram em nome de um desafio. Já pedalei 5000 quilômetros desde que deixei o Brasil. Prefiro colecionar experiências a números. Mas no meio do caminho pintou uma experiência daquelas que não queremos passar. Para isso preciso falar sobre a Perica.
Perica é essa cachorrinha linda das fotos. Até o fim do ano ela terá muitos carimbos em seu passaporte. Enquanto Alvaro e Olívia aproveitam o pacífico com suas pranchas de kitesurfe, Perica brinca na areia. Ela já espalhou o seu charme por várias províncias de seu país natal e também por boa parte do Chile.
Ela é meio difícil sabe? Não vai com qualquer um. Para eu conquistar sua confiança foi necessário viver um grande susto! Depois do meu aniversário passamos uma noite com as estrelas no Cerro Paranal, fizemos um pitstop em Antofagasta e chegamos a Mejillones, uma cidade portuária, onde passaríamos a noite antes de seguir rumo a Arica. Armei o acampamento e iniciamos o ritual de cozinhar, tomar vinho, ouvir música e conversar. Enquanto Alvaro contava como conheceu e se apaixonou pela Olívia, a Perica veio conferir o que tinha sobrado do jantar e se deliciou com o restinho do macarrão ao molho branco. Menos de meia hora depois, lavamos a louça e chamamos a Peri… mas ela não apareceu.
Eu fiquei tenso imediatamente. Alvaro e Olivia nem tanto, pois ela sempre volta. Mas desta vez não voltou. Eu saí de bicicleta chamando por seu nome. Nada! Depois saímos caminhando com lanternas. Nada! Alvaro e Olivia foram de Kombi e eu fiquei esperando, para caso ela voltasse! E nada mais uma vez! Tudo de feliz que vivíamos foi substituído por dor, sofrimento e apreensão. Estávamos num canto de praia, em um morro uns 20 metros acima da areia. Para baixo havia uma pequena faixa de areia, a frente o oceano e atrás um deserto. Por onde estaria Perica?
Sabe daquelas histórias fofas que vemos na internet de casais que saem viajando o mundo com um cachorro? Esses são Olivia, Alvaro e Perica. E pra completar, numa Kombi anos 80. Uma trip muito alto astral e feliz. Gente que sai espalhando buena onda e sorrisos por onde passam. Aquilo não podia estar acontecendo!
Olívia já estava em frangalhos. Álvaro tenso, mas muito sereno. Depois de dias muito especiais com eles, aquele drama já era meu também. Fomos deitar desolados, esperando que a Perica voltasse na madrugada. E lá pra umas duas da manhã, ao invés dela arranhar as patinhas na porta da Kombi, fomos surpreendidos por três carros suspeitos que começaram a perturbar com música muito alta bem ao lado de onde estávamos. Se já não bastasse, mal conseguimos pregar os olhos com aquela bagunça toda.
Amanheci e esperava ver a cachorrinha dentro da Kombi. Mas ela não voltou! Alvaro saiu pela praia para procurar. Olívia caminhou bastante até chegar a umas casas para perguntar. Perica não estava com os vários cachorros que andavam soltos por ali. Eu desmontei a barraca e fiquei de plantão para caso ela voltasse para lá. Ambos retornaram sem nenhuma pista!
O mais estranho é que apesar do lugar ser amplo e aberto, não havia muitos lugares onde ela poderia ir. Todos os cenários vieram à cabeça, até os mais trágicos, mas seguimos focados nas buscas. Alvaro e Olívia saíram gritando seu nome pela janela da Kombi. Eu fiquei uma, duas, três, quatro horas os esperando e nada. Fiquei ainda mais tenso. Uma viatura da polícia passou por ali, expliquei o ocorrido e perguntei se eles haviam visto uma Kombi azul com placa da Argentina. O policial disse que os viu sim: numa oficina mecânica. Pasmem, a Kombi quebrou durante as buscas.
Montei os alforjes na bicicleta e parti rumo ao centro, procurando-os nas oficinas da cidade. Demorei, mas achei. Já era mais de duas da tarde e nenhuma notícia da Perica.
Voltei de bicicleta para a praia e percorri uma trilha ao lado do mar onde nos disseram que os cachorros da região costumam ir. Um cachorrinho lindo me escoltou até uma praia deserta, mas nenhum sinal da Peri.
De volta a Kombi, voltamos a procurá-la. Os gritos da Olívia saíam com choro e cada vez com menos esperança. Deixamos nossos contatos espalhados pela cidade toda e, quando já havia escurecido, entramos em um camping/pousada para checar por lá também. Fomos extremamente mal recebidos por um rapaz que trabalhava lá, que sem nenhuma sensibilidade e educação nos expulsou. Disse que chamaria a polícia se não saíssemos. Que dia! Mas calma, ainda não acabou! Ao tentar sair da tal propriedade, a Kombi não pegava de novo! Incrível! O tipo mal educado não nos permitiu acampar, então tivemos que pagar caro num chalé. No fim foi a melhor coisa a se fazer. Comemos, tomamos banho e dormimos melhor.
Na manhã seguinte, abri o computador e fiz um cartaz de procura-se com a foto da Peri e os dados do casal. Enquanto Álvaro procurava alguém para rebocar a Kombi, Olívia seguia buscando a pé e eu fui pedalando de volta ao centro para imprimir os cartazes e distribuir pela cidade. Na gráfica, a dona ficou sensibilizada com o drama. Me conectei e tinha uma mensagem emocionada do Álvaro:
“Isra, estamos en el taller y Oli fue a buscar Peri que acaba de aparecer”
Eu e a dona da gráfica nos emocionamos. Eu já havia impresso e pago pelos 50 folhetos. Voltei voando para a oficina e lá estavam todos emocionados! Que alívio! Perica ficou desaparecida por dois dias e estava mancando, com fome e com medo. Uma das muitas pessoas que ficaram com o telefone do Álvaro fez o contato. Ela foi encontrada assustada, escondida numa casa abandonada.
A Kombi foi reparada mais uma vez. Foi como um sinal para que não saíssemos de Mejillones até a Perica aparecer. Todos choramos e sentimos um alívio absurdo.
Decidimos voltar a Antofagasta para dar uma geral na Kombi numa oficina melhor. Naquela altura do campeonato, por mais que eu quisesse voltar a pedalar, eu não conseguia mais sair de perto deles. A nossa aventura precisava ser reiniciada!
Perica voltou aos poucos ao normal e passou a vir no meu colo enquanto seguíamos na estrada. Talvez tenha ouvido os meus gritos, talvez tenha sentido que eu a procurei como se ela fizesse parte da minha vida há tempos. A esperança nunca pode morrer, mesmo quando tudo estiver dando errado e parecer sem solução, há que acreditar até o fim! Foi isso que fizemos!
O encontro final.
Para finalizar, depois de toda essas aventuras e emoções, decidi fazer uma justa homenagem. A minha bicicleta que me acompanha há mais de cinco meses nessa estrada ainda não havia sido batizada. Agora ela tem um nome:
Perica.