Sem sombra de dúvidas, concluir a regata de longo percurso do maior circuito de vela oceânica da América Latina é um título cobiçado por muitos velejadores que ousam desafiar o mar em busca de uma experiência autêntica. Dentro da Ilhabela Sailing Week, a regata de longo percurso, a Alcatrazes por boreste, tem sua pitada de charme mas, acima de tudo, de realização. Alcatrazes está localizada ao norte do litoral norte de São Paulo e tem sua navegação limitada por órgãos de proteção ambiental. É um conjunto grandioso e tê-lo na memória por si só já é um título.
Uma prova emblemática e, por incrível que pareça, a mais acessível. Sim, acessível, porque muitos velejadores que parcicipam do circuito são velejadores de cruzeiro e isso torna possível competir, pois é uma navegada longa e muito parecida com um cruzeiro, diferente das regatas barla-sota, entre boias, que são curtas e com muitas manobras técnicas.
A previsão apontava bons ventos, mas essa interpretação variava de embarcação para embarcação. Um barco é a extensão do corpo de cada tripulante, por isso, os treinos são importantes, mas também o tempo embarcado e a integração da tripulação. Afinal, são muitas personalidades diferentes confinadas num mesmo espaço a kilometros de terra firme. O barco fala conosco, o mar também, e nada acontece de repente. O vento tem cheiro e as ondas respiram, basta estar atento aos sinais. Partimos todos para a raia, uma centena de barcos ávidos pelo tiro de largada, todos fazendo suas medições, testando suas velas, checando seus equipamentos, até que o regressivo iniciasse.
Esses 5 minutos são sempre muito tensos, parecem uma eternidade e é o tempo de tomar o alinhamento, manter o barco em movimento com sua velocidade controlada para não bater nas outras embarcações, tampouco queimar a linha de largada. Velas batendo todo o tempo, a corneta de 1 minuto soa e as tripulações ficam com os nervos à flor da pele. São muitos barcos com muitas toneladas a centímetros de distância uns dos outros e com ventos que fazem suas velas quase rasgarem de tanto bater. No púpito de proa, o proeiro vai guiando o timoneiro enquanto o regressivo corre. 5, 4, 3, 2, 1, e é dado o tiro de largada, em regata!
Como estava tripulando o barco com uma tripulaçao toda nova, achei mais prudente visualizar todos dentro do barco para encontrar o melhor lugar para fixar meu Spot Gen3. Onde ele conseguisse transmitir o sinal para o satélite e não corresse o risco de ser chutado e lançado ao mar.
Após a largada, já identificamos que o vento vinha aumentando a cada rajada e isso já alertou a tripulação para que reduzisse nossa área velica, pois o barco tinha um limite de navegação que poderia ser prejudicado e manter as velas reduzidas, nos garantia uma navegada mais segura. O leme ficou leve, mantivemos a mesma velocidade, manobra realizada com sucesso!
Como o vento e o rumo eram os mesmos para todos, a flotilha permaneceu proxima, permitindo um bom contato visual com todos os outros barcos. Navegamos em classes, isso significa que as embarcações recebem medições para aproxima-las e permitir uma competição mais equiilibrada. Normalmente quando nos inscrevemos, consultamos quais são os barcos inscritos em nossa classe, pois perdemos ou ganhamos pontos de acordo com a medição de cada um, e conhecendo os oponentes é possível traçar estrategias diferentes para a Ilhabela Sailing Week.
Assim que deixamos o canal de São Sebastião, todos os barcos se espalharam, alguns seguiram rumo à Toque Toque e outros rumo à Alcatrazes, com rajadas de aproximadamente 30 nós (aproximadamente 60km/h) e ondulações de 2 m de altura. Muitos barcos não conseguiram vencer as condições e acabaram por abandonar a prova, alguns por problemas de equipamentos, outros por estar sem parte de tripulação que apagou por conta do mar agitado. O abandono é uma medida de segurança, e fomos acompanhando pelo rádio as posições ou desistências das embarcações que seguiam competindo.
A navegação varia de acordo com o vento e o rumo pretendido. Por isso, em alguns momentos as ondas vinham pela proa, e em alguns momentos vinha pelo través (lateral do barco), e a cada onda que atravessava todo nosso deck, nos sentíamos mais próximos da Volvo Ocean Race. O frio vai se tornando uma constante e chega uma hora em que o corpo pede água, mas conseguimos controlar a tripulação e nossa navegada seguiu tranquila. Bem, tranquila não seria a palavra mais apropriada. Sessenta milhas nauticas são equivalentes a aproximadamente 110 km de distancia. Então surge a pergunta: mas 110 km narrados nesse sofrimento todo? Sim, mas na navegação essa distancia aparentemente pequena poderia durar 14 horas ou mais dependendo das condições. Tempo suficiente para cruzar aproximadamente 1.000 km num carro a uma velocidade média de 100 km/h, por isso essa regata é considerada um desafio.
Emitimos nosso aviso de chegada às 23:29. Eu estava na cabine e no breu da noite era possível ver o led verde do Siga-Me do meu SPOT Gen3 refletindo no fundo da retranca, me sinalizando que a navegada seguia tranquila, mesmo sob todas as condições enfrentadas. Dos 119 barcos que largaram, apenas 34 cruzaram a linha de chegada. Foi o maior número de desistências em 42 anos de circuito, onde do primeiro ao último, todos foram campeões. Essas condições de navegação fazem sim haver um campeão, mas não ter chegado em primeiro lugar não tira o título e a bravura de ter enfrentado todas aquelas condições de navegação, não para os homens do mar.
Curiosidade: A diferença dos velejadores de cruzeiros para os regateiros (racers) é que os cruzeiristas passeiam com suas embarcações em navegadas longas onde os barcos são praticamente casas e, os racers são navegadores técnicos, submetidos às condições extremas naturalmente e que, obrigatoriamente navegam para alcançar seus objetivos, independente das condições.