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Do Mar ao Glaciar – de bicicleta nas alturas

Do Mar ao Glaciar – de bicicleta nas alturas

Viagens

Imagine estar em um lugar daqueles que vemos apenas em nossos sonhos. Olhar para todos os lados e ter uma visão panorâmica do paraíso. Escutar a batida do coração misturada com o bater das asas das águias, ambas abafadas pelo som das águas que escorrem em forma de cachoeiras, rios e chuva, sentidas na pele em lágrimas, apenas não mais puras que as lagoas azul turquesa que colocam novamente coração, mente e alma em harmonia com a natureza. Era apenas eu, a bicicleta e a natureza.

Este foi o prêmio. Pedalar do nível do mar a 4.767 metros de altitude foi o preço. Foram 13 dias de viagem desde a capital peruana, alcançado por três vezes picos acima dos quatro mil metros, dois deles a quase cinco mil.

 

Buzinas

Deixar uma cidade grande é sempre uma pedalada tensa, ainda mais se tratando de Peru e sua capital. Os taxistas se alinham ante o semáforo e, com os motores no ponto morto, buzinam sem sincronia para caçar passageiros. Essa é a trilha sonora peruana para quem viaja de bicicleta: buzinas estridentes e irritantes. Aquela respirada funda e aliviada ao chegar nas dunas de Pasamayo, já longe do caos, devolveu a paz. Após quatro meses pedalando na altitude entre Chile, Bolívia e Peru, enfim eu voltava a ver as agitadas águas do Pacífico. Aproveitei os dias de vento a favor e asfalto plano para matar as saudades de pedalar a mais de 30km/h e voltar a fazer perto dos 100km por dia. Deixei a Ruta Pan-Americana para retornar aos acampamentos selvagens na serra em direção a Conococha – e seus 4.100m de altitude.

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Israel pedala por estrada peruana.

Após ficar doente e parado por muitos dias me recuperando de uma infecção na garganta, deu um frio na barriga. Apesar de me sentir forte e completamente curado, esta viagem de bicicleta nas alturas era um baita desafio. Mas o que andava dando medo mesmo era conviver com os motoristas peruanos de comportamento padrão irresponsável. Além das buzinas quase sempre dispensáveis, sua forma de conduzir automóveis – dos menores aos maiores – deixa qualquer ciclista destemido com o rabo entre as pernas. Eles ultrapassam e vêm em velocidade em sua direção e o que cabe a nós é desaparecer de alguma forma. Às vezes não tem para onde ir, resta torcer para que eles voltem rapidamente às suas faixas. Nas curvas fechadas eles costumam cruzar de faixa como os pilotos de Fórmula 1, e até quando está tudo calmo há quem tire aquela fina só para te provocar mesmo.

Pedalar no Peru não é para os fracos e exige muita atenção e paciência.

 

A vida por um fio

Cheguei comemorando o primeiro objetivo alcançado em Conococha. Poderia e deveria ter levantado acampamento por ali, pois já era quatro da tarde e o tempo estava fechando, mas decidi seguir já que todos prometiam um caminho de ladeiras tranquilas para percorrer em descida. Começara a chover e em uma curva vi a vida passar diante dos meus olhos.

Uma caminhonete perdeu o controle, derrapou e capotou distante mais ou menos vinte metros de onde eu, paralisado, estava. Foi um choque. Quando vi o carro perdendo a traseira eu simplesmente parei no meio da pista e assisti perplexo e de olhos arregalados. O motorista e um passageiro giraram no ar dentro do carro, bateram com o teto no asfalto, deram mais uma volta e retornaram à posição que nunca deveriam ter deixado. Tudo isso vindo em minha direção. Foi perturbador! Os dois saíram sem arranhões pela janela e, um pouco constrangidos, dispensaram o meu apoio.

Toda aquela vibração que eu vivia momentos antes foi quebrada com o acidente. Ainda bem impressionado e assustado decidi seguir viagem e tentar relaxar nas descidas até Huaraz antes que a chuva apertasse. Mas não teve descida, a chuva apertou e para deixar tudo mais dramático foram mais de vinte quilômetros num sobe e desce sem fim com os pés e mãos congelando a mais de quatro mil metros de altura. As trovoadas nesta altitude ressoavam ainda mais fortes, transformando o cenário de um filme de final feliz para um drama, quase terror. Eram quase sete da noite quando cheguei a Catac, o primeiro vilarejo em trinta quilômetros. Corri para uma hospedagem onde tomei um banho quente, comi e dormi, mas ainda com o coração bem agitado pelo dia bem extremo que havia vivido. Na manhã seguinte cheguei a Huaraz e decidi ficar um dia a mais descansando para me recuperar principalmente do susto.

 

Para o alto

Desde Huaraz começara uma viagem diferente, com as montanhas nevadas ainda no horizonte. Essa região é daquelas para contemplar e aproveitar cada instante, então decidi ir com mais calma que o normal. Fui até Caruhaz e comecei a subir sentido Shilla. A vista do vale já era linda, mas eu sabia que ainda tinha muito por vir. Despretensiosamente, subindo lentamente, parando para fotografar, conversar com os locais e compartilhar meu café com alguns deles, cheguei até a Quebrada Ulta, um lugar imponente. Acampei sob as estrelas e cercado pelos glaciares do Parque Nacional Huascarán.

Israel monta acampamento em montanha do Peru

Amanheci com a missão de chegar ao lugar mais alto de toda a minha viagem até então, o segundo dos três cumes acima dos quatro mil metros. Percorri pacientemente os caracóis da serra que leva até a Punta Olímpica em seus 4.732 metros de altura. As últimas curvas foram especiais pois além do sentimento gratificante de ter saído do zero e chegar tão alto pedalando, me senti abraçado por aquelas montanhas branquinhas que me rodeavam por todos os lados. Os glaciares tinham uma tonalidade azulada e esverdeada em algumas partes.

Foi emocionante! Eu gostaria de ter ficado mais tempo lá em cima, mas já caíam algumas gotas do céu e não quis vacilar outra vez. Atravessei o assustador e gelado túnel e desci em alguns minutos tudo que duramente subi em muitas horas. Cheguei em Chacas (3.360m de altitude) e fui muito bem recebido pelos italianos da bela paróquia da cidade. Lá descansei, comi e conheci muitas histórias inspiradoras.

 

O prêmio

O mais difícil estava por vir: subir um pouco mais alto, até 4.767 metros de altura, mas agora sem asfalto, em uma estrada terrivelmente acidentada com pedras enormes, barro, buracos e precipícios. A primeira perna da viagem me deu confiança e fui cheio de respeito para este trecho final. Passei por Yanama, onde a prefeitura gentilmente me convidou a passar a noite em um hotel na bela Plaza de Armas. Peguei mais chuva e vento e… quer saber de uma coisa? É muito bom sentir na pele as variações do clima. Antes de trocar de roupa e me proteger, há que encarar como uma bênção as gotas molhando a cara, o vento arrepiando a pele queimada do sol. É mais que sentir-se vivo, é sentir que podemos estar além de conectados com a natureza e enfim perceber que somos tudo, o todo e uma coisa só. Esse nível de sintonia faz com que as lágrimas de emoção escorram para dentro da boca aberta por sorrisos que surgem ao ver um arco-íris, ao escutar um balido da ovelha, presenciar uma porca amamentando seus filhotes ou um camponês curioso que te cumprimenta com todos os dentes para fora.

E foi com esta paz que terminei meu último dia antes do cume. Encostei a minha bicicleta numa pedra e fui buscar água no rio e ver se encontrava um lugar para acampar. Então escuto o berro de uma vaca. Quando olho para trás a vejo paralisada ao lado da minha bicicleta – foi uma bonita cena – e, ao me aproximar, ela me guiou para um pampa perfeito para montar a barraca. A vaca me mostrou um lindo, calmo e escondido lugar para passar a noite. Ela desapareceu e instantes depois surgiu um touro negro com chifres bem afiados. Ele me observava com um olhar fixo e ficou ali desconfiado por toda a noite. Parecia alguém curioso por ver um ser estranho usando um cômodo de sua casa. Acho que a vaca não o avisou que eu era seu convidado para aquela noite.

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Israel pedala por estrada de terra no Peru.

Choveu bastante de madrugada, mas o sol me acompanhou entre as nuvens para este último dia. Me restavam 14 quilômetros de subida casca grossa até Portachuelo de Llaganuco e eu gritava alto a cada novo quilometro conquistado. Foi um dia de muita gratidão! Mesmo vivendo um sonho, às vezes caímos na rotina e, até mesmo na bicicleta, há piloto automático. Dias como esses na Cordilheira Blanca servem

para reforçar o tamanho do privilégio que é viver tudo isso. Há que agradecer por estar vivo para ver com os próprios olhos lugares e situações inimagináveis. Foi impossível não chorar, não gritar de alegria ao atravessar uma passagem entre dois grandes rochedos e presenciar o lado mais incrível daquela cadeia de montanhas e glaciares, a paisagem mais impressionante em quase 300 dias de viagem pela América do Sul.

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Vista sensacional das montanhas do Peru.

Me senti um herói, ainda mais quando turistas desceram de um ônibus e ficaram divididos entre fotografar a natureza e me perguntar como eu chegara até ali pedalando. Fiquei mais de uma hora contemplando, descansando, comendo e tirando fotos. A descida foi difícil porque a estrada é bem estreita e cheia de pedras, mas para coroar o final da viagem vieram as lagoas, que mais parecem águas do oceano de alguma praia paradisíaca.

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Israel pedala com sua bicicleta por uma lagoa com visual incrível.

Foi a minha despedida do Peru, um país surpreendente, de história intrigante e abençoado por uma natureza diversa. Um lugar onde passei por altos e baixos além das montanhas e que me proporcionou extremos de aprendizado. Agora é hora de cruzar mais uma fronteira e começar a pedalar rumo ao hemisfério norte.

Valeu, Peru! E que venha o Equador!