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Em 24h Deixei O Círculo Polar Ártico E Parei Na Cadeia

Em 24h Deixei O Círculo Polar Ártico E Parei Na Cadeia

AventuraParceriasViagens

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Mal pude me despedir de você, Noruega. Quando vi já estava na Finlândia, deixando inclusive o Círculo Polar Ártico, onde pude vivenciar dias e experiências memoráveis. A rota é sentido sudeste para sair da comunidade europeia pela Rússia, no limite dos três meses que brasileiros tem direito de estar na Europa (espaço Schengen). Três graus Celsius negativos durante o dia já virou rotina e estou adaptado. Roupa térmica, roupa de chuva, capas para os tênis, luva à prova d’água, comida pronta e músicas/podcasts para fazer companhia. A orquestra está tocando afinada. A bicicleta está se comportando e eu cuidando bem dela.

Aclimatado, preparado, experiente e cheio de sonhos na bagagem, não me cabe outra coisa que não seja pedalar e aproveitar o caminho. Ah, e ele tem sido bom, viu? A troca da estação e a mudança no clima se vê tão de perto. É especial estar em uma região tão extrema em clima, natureza, cultura e sociedade, e assistir as cores e hábitos mudando como se eu fosse um pássaro migrando para outra região em busca de comida e melhor clima, o que de fato venho fazendo.

Nesta estrada venho acompanhando as florestas amarelando, as Auroras ficando literalmente para trás e no lugar das ovelhas tenho visto alces e renas. A natureza é implacável, sempre soube. Provei de sua força nas primeiras semanas de viagem na América do Sul, pedalando mais de 1 ano no continente, fiz até aniversário na estrada, mas ontem ela veio condensada em outra forma: neve.

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Amanheci acampando de frente para um lago, que não estava congelado na noite anterior. Lancei umas pedras para conferir e elas saíram quicando e fazendo um som que eu ainda não conhecia. Peguei a bicicleta e parti junto com os primeiros flocos de neve do dia. Minutos depois a estrada já estava toda branca e os flocos ganhavam corpo enquanto caíam do céu. Batiam na roupa e se despedaçavam, ou ficavam ali como placas de gelo. Foi a primeira vez que vi neve de verdade e estava ali, bobo, como quem descobre que o mar é salgado. Olhava para trás e via o rastros dos pneus da bicicleta como pegadas de um explorador em uma daquelas expedições polares. É assim que me sinto, por mais que esteja pedalando por estradas e trilhas transitadas.

A neve subiu e o asfalto começou a ficar escorregadio, então decidi que era hora de procurar refúgio e testar a hospitalidade finlandesa. Eles sem inglês, eu sem finlandês, na mímica recebi dois nãos. Depois aconteceu algo novo. Me aproximei de uma casa num terreno grande, onde vi que tinha uma garagem, um galpão e lugar onde eu pelo menos poderia esperar por um tempo. Bati na porta e então apareceu uma senhora furiosa, que nem olhou para a minha cara, muito menos escutou o que eu tinha para tentar dizer e saiu atrás de mim com um pedaço de pau para me agredir. Pode parecer engraçado, mas não foi. Quase deixei luvas, capacete e gorro pra trás empurrando e correndo com a bicicleta na neve porque parecia que aquela pessoa queria mesmo me bater. Como sabemos ou já deveríamos saber, não há justificativa para a violência.

Sempre vale a pena lembrar: estou nessa por escolha própria. Não sou nenhum coitadinho. Posso sim armar a barraca em algum canto e esperar. Bato em algumas portas, às vezes, não só pelo conforto, mas também pela experiência e oportunidade humana.

Ela gritando de lá em Finlandês já parada no meio do caminho e eu olhando para trás resmungando em português, triste. A experiência humana é isso né? É no Brasil, é na Finlândia e em qualquer outro lugar… Sempre tem #elesim e #elenão. Tem comportamento e opinião que parecem – e são inaceitáveis. Prefiro me afastar de gente assim e seguir meu coração e minha estrada. Foi o que fiz.

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Nevava mais e decidi pedalar até onde dava, ainda bem irritado. Depois o orgulho foi embora e caí na real de novo, percebi que deveria parar. Encontrei mais uma grande propriedade vazia. Afastada da casa principal tinha uma cabana de madeira, uma espécie de oca escandinava onde eles costumam fazer fogueira. Estava aberta. Tinha lenha e acendi o fogo. Eu não tinha mais água. Derreti a neve, fervi e filtrei. Cozinhei, relaxei, me aqueci e descansei, ainda sem saber se poderia ficar ali a noite toda. De repente se aproxima um carro e o coração apertou. Se uma senhora queria me agredir só porque bati na porta dela, imagina o que poderia acontecer se descobrem que há alguém na sua cabana de inverno? Abri a porta com medo e um homem bem ao estilo viking se aproximou com um semblante amigável.

Tentei explicar que estava viajando em bicicleta e que chegou a neve e era a minha primeira vez, etc… Ele fez um sinal de positivo e foi embora em segundos. Fiquei aliviado! Tirei o saco de dormir e tirei um cochilo. Depois preparei uma sopa e estava vendo um filme quando escuto novamente um carro se aproximando. Imaginei que seria o mesmo viking, agora voltando pra casa, quem sabe interessado por seu intruso anfitrião.

Otimista como sou, esperava até que ele estivesse trazendo umas cervejas. Abri a porta e duas lanternas na minha cara. Era a polícia. Aquele filme “Vou ter que pagar multa, vou para a cadeia e nunca mais vou poder voltar pra Europa” passou na cabeça em frações de segundo.

Eles perguntaram quem eu era e o que estava fazendo ali, com bastante respeito, profissionalismo e ótimo inglês. Com medo, mas com segurança expliquei que estou viajando de bicicleta, que sou brasileiro e que começou a nevar forte. Era a minha primeira vez na neve, tentei buscar ajuda com pessoas no caminho e por fim achei essa cabana aberta. Enfim, contei rapidamente toda a verdade. Sérios, eles disseram que eu estava invadindo propriedade privada e que eu não poderia ficar ali. Quando disseram isso já senti que “OK” é só pegar as minhas coisas e ir embora. Mas já era tarde, estava nevando e não é todo coração finlandês que é gelado. Eles disseram que poderiam colocar a bicicleta na viatura e me levar até a delegacia, em Kuusamo, justamente o meu destino naquele dia interrompido. Me convidaram a passar a noite lá. Aceitei, com um pé na neve e outro no “não tem opção”.

Bicicleta dentro do carro e eu no chiqueirinho apertado sem poder ver nada do lado de fora. Eles lá na frente com meus passaportes. Uma câmera vigiando e o arrependimento batendo forte. “Será que poderia confiar neles assim?”

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Chegamos quase uma hora depois. Eles me perguntaram de novo se eu gostaria de passar a noite na delegacia. Pensei que se eles estavam me dando opção, é que estava tudo certo. Me confirmaram que não iam abrir ocorrência e que eu não teria nenhum problema, nem para sair nem para voltar para a Europa. Aceitei e na hora ele bateu um rádio pra dentro. Colocou minha bicicleta e malas numa cela com grades. Me deu uma bandeja onde já estavam meus passaportes e onde precisei deixar o celular e outros objetos. Me pediram para tirar a jaqueta e os sapatos. Me revistaram e me levaram para uma cela. Isso mesmo, uma cela destas que vemos nos filmes americanos ou europeus. Com um vaso sanitário bem rústico, mas sem grades e sim uma porta de aço, sem janelas. Claustrofóbico.

Com alguma simpatia, me deram uns cobertores, me desejaram boa noite e trancaram a porta blindada. Já era tarde para desistir. Eu não precisava sair, mas a sensação de estar preso e não poder abrir o portão foi muito intensa. Era como uma solitária, com uma luz que ficou acesa a noite toda. Eu estava psicologicamente acabado para pensar em qualquer desdobramento, mas antes de pegar no sono passou pela minha cabeça se “quem me prendeu” estaria pela manhã para abrir para mim ou se o pessoal do novo turno saberia da minha história, se falariam inglês e etc.

Desabei no sono ignorando a luz e câmera que me vigiava em um dos quatro cantos do xilindró. Sem saber que horas eram, acordei com a sensação de haver dormido demais. Comecei a chamar e bater na porta para abrirem e nem sinal dos policiais, mas ali descobri que tinham outros presos encarcerados naquele corredor que responderam algo aos meus gritos.

Passou mais ou menos meia hora de angústia, sem ver a luz do dia, sem saber nada, até que abriram a porta. O mesmo simpático policial que me deu cobertores veio com cara de sono e com meu celular na mão, que apitava o alarme das 7 horas da manhã, que eu havia programado para sair daquela cabana que não pude ficar. Montei a bicicleta e saí aliviado.

No fim das contas, deixando paranoias de lado, a cadeia foi um lugar quente, protegido da neve e do frio. Um refúgio de gente que quis ajudar, mesmo podendo te complicar. Uma mão que desconfiei ao apertar, mas que veio justamente num momento onde vejo senhoras com um pedaço de pau na mão correndo atrás dos outros para agredir, sem sequer ouvi-los. Assim sigo.